Entre Áfricas e Brasis: a poesia negra na sala de aulas

Entre Áfricas e Brasis: a poesia negra na sala de aulas

Literatura para implodir estereótipos e, em seu lugar, erigir equidades

 

Inicia-se esta breve reflexão acerca da importância da utilização da poesia negra nas salas de aulas do Brasil como eficaz instrumento de prática antirracista, tomando como ensinamento uma das premissas do mundialmente conhecido educador brasileiro  Paulo Freire, em Educação como prática da liberdade: o ser humano “não está no mundo, mas com o mundo. Estar com o mundo resulta de sua abertura à realidade, que o faz ser ente de relações que é”.

Como docente de escolas públicas da periferia da cidade de São Paulo (SP), a maior deste país e uma das maiores do planeta, venho utilizando a poesia                   negra – especialmente de autores brasileiros, angolanos e moçambicanos (e dos outros países da África que têm o idioma português como oficial) – para não apenas cumprir o ofício docente no que concerne ao aprimoramento de competências para ler e produzir textos, mas, também, promover discussões sobre o racismo e a importância da luta antirracista. Se estamos em um mundo de todos, devemos nos abrir à realidade na qual inexiste espaço para exclusão de qualquer natureza.

É pertinente ressaltar ao leitor do Jornal Visão que no Brasil, segundo dados oficiais do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mais da metade da população do país se declara como negra (aqui, existem as tão discutíveis denominações pardo e preto para critérios de classificação de cor; juntos, pardos e pretos constituem aproximadamente 60% da povo, segundo o último censo). A despeito de majoritária na composição étnica do país, contraditoriamente, a população negra situa-se entre as minorias, em razão de o preconceito racial lhe relegar a exclusão social – nas oportunidades, no poder aquisitivo, na criminalização e na execução, sobretudo de jovens.

Na periferia da cidade de São Paulo, na qual resido e atuo na regência de aulas, há aproximadamente duas décadas, por exemplo, os percentuais da população que se declara negra não ultrapassam a casa dos 40%, mas a percentagem de estudantes matriculados na maior rede pública municipal do país é de mais de 50% dentre os que autodeclaram negros. Segundo números da Secretaria Municipal de Ensino (SME-SP), de 2008 (a questão talvez seja mais emblemática atualmente), de mais de 900 mil educandos, 230 mil não sabem definir sua cor; isto é, uma grande parcela atendida pelas escolas públicas é negra, sobretudo da periferia (onde a exclusão social é mais intensa), ainda que, por razões históricas de um país racista, não se identifique como tal.

A despeito de fundamentar as ações didáticas desenvolvidas na escola em referências bibliográficas diversas – acadêmicas, literárias, oficiais, bem como fontes de seguras de instituições e sites de jornalismo –, é oportuno citar uma diretriz das “Orientações e ações para a educação das relações etnicorraciais”, de âmbito federal, publicada em 2010: promover “a realização de projetos de diferentes naturezas no decorrer do ano letivo”. Vale ressaltar que no Brasil, infelizmente, ainda é frequente tocar no tema etnicorracial apenas em datas simbólicas, como o Dia da Consciência Negra (celebrado anualmente em 20 de Novembro, rememorando Zumbi dos Palmares, um dos maiores heróis da resistência negra no país de todos os tempos).

Como constitui dever moral – mais do que obrigação legal – adotar práticas antirracistas nas escolas, tenho desenvolvido trabalhos pedagógicos que visam a esse propósito. Ora em ações, sequências didáticas e projetos individuais, ora em projetos coletivos, as práticas de ensino-aprendizagem têm sido constantes no exercício do meu magistério. Para tornar mais objetiva a exposição, discorrer-se-á acerca de dois trabalhos (ambos em escolas públicas, uma do município e outra do estado), mas serão citados alguns outros exemplos.

Em 2016, na EMEF CEU Cantos do Amanhecer (rede municipal de São Paulo), se desenvolveu o projeto Culturas que também se expressam em português. Concebido a partir de intervenção que propusera aos estudantes de EJA (Educação de Jovens e Adultos), no primeiro semestre do referido ano, foi ampliado pela participação de todos os docentes da unidade escolar. A partir de poemas de poetas de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, propôs-se pelo projeto não apenas a fruição literária, mas, também, a possibilidade de discutir sobre assuntos atinentes ao racismo e às práticas antirracistas. Culturas que também se expressam em português se expandiu por meio de redes sociais, especialmente WhatsApp e Facebook, chegando a familiares de estudantes e professores, bem como sendo difundido para outras turmas da escola, bem como em outro colégio do bairro.







 

Postagem do blog do autor, de foto tirada do painel do projeto


 

Entre os anos de 2012 e 2016, na EE Professor Francisco de Paula Conceição Júnior, foi articulado por mim o Sarau RAP; mas desde a primeira edição, houve adesão de outros profissionais, especialmente das disciplinas de Educação Física, Geografia m História e Ciências. Engendrado para desmitificar a ideia de que a competência para produzir literatura é destinada a poucos escolhidos e, paralelamente,  extinguir a tese preconceituosa de que a composição do RAP não se constituía como texto poético, visava o projeto a ler e discutir poemas – de autores canonizados e não canonizados, especialmente de literatura brasileira contemporânea e periférica – para, na sequência, analisar recursos estilísticos empregados pelos poetas, e, por fim, repetir o procedimento com letras escritas por rappers. Reconhecendo especificidades do RAP, os estudantes não só puderam compreender que se tratavam as letras do gênero musical bastante apreciado por  eles  de textos poéticos, como, a partir de seus olhares adolescentes de mundo, passaram a produzir seus textos autorais e declamá-los em eventos da escola e, posteriormente, (alguns deles) em eventos da comunidade.

Em ambos os projetos, não apenas se ampliou o repertório discente – de mundo e de literatura –, mas também impactaram os trabalhos pedagógicos  na autoestima de todos eles, especialmente os que mais sentiam excluídos, com destaque aos meninos e meninas negros. Resultados tão positivos quanto os alcançados por estas ações se notam em outras que arquitetei ou de que fui um de seus idealizadores: Racismo é o Ó... Unidos contra o preconceito racial, de 2012, livro de contos elaborados por estudantes de nono ano da Escola Estadual Professor Francisco de Paula Conceição Júnior, que teve grande repercussão na cidade e fora dela; Quatro elementos em prol do conhecimento, cujo produto final foi a produção RAPs e recital, por estudantes de oitavo ano da EMEF CEU Cantos do Amanhecer; Semana da Consciência Negra, articulada tanto em uma quanta em outra unidade citadas aqui, frequentemente com convidados negros e negras.

A literatura não vai mudar o mundo, mas, ao transformar as pessoas, sempre foi (é e será) a linguagem por meio de qual o ser humano se afirmou, denunciou, combateu e promoveu revoluções. Os leitores do Jornal Visão conhecem bem o poder da literatura nas trincheiras pela independência de Moçambique; assim como os negros, periféricos, mulheres, LGBTIs – do Brasil e do mundo – reconhecem a potência da palavra poética alterar os rumos da história. Vale lembrar que na posse do atual presidente dos EUA, uma poetisa negra foi convidada para recitar na solenidade, sinalizando (ou no caso da atual gestão, ao menos tentando sinalizar) que são novos os tempos naquele país e, quiçá, no mundo.

A poesia tem o poder de educar e transformar. Sou testemunha viva disso, como cidadão e como professor.

Postar um comentário

0 Comentários